Nelson Rodrigues dos Santos
Fev/2015
Em mensagem anterior aos companheiros do
Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, lembrei várias derrotas
desse movimento e do SUS. Dias após me veio á lembrança e sensação, o
poema que há quase um século Vladimir Maiakóviski nos legou:
“Na primeira noite eles se aproximam
E levam uma flor do nosso jardim
E não dizemos nada…
Na segunda noite, já não se escondem:
Pisam as flores, matam nosso cão
E não dizemos nada…
Até que um dia o mais frágil deles
Entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e,
Conhecendo o nosso medo, arranca nossa voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada”.
Declamaremos adiante o “poema” da
sucessão de derrotas impostas ao SUS e à sociedade sob a ótica revelada
por Maiakóviski, mas desde já destacamos um diferencial: a incontestável
acumulação de avanços no SUS, quanto à realizações concretas, à
formulação de estratégias e à coerência com os postulados
constitucionais da Universalidade, Integralidade e Equidade. Essa
acumulação vem se dando a duras penas, com dedicada persistência,
criatividade e confiança no futuro dos 25 anos do SUS, o que redundou em
centenas de focos ou nichos de excelência e “expertise” no território
nacional, nas áreas da Atenção Básica á Saúde até o Transplante de
Órgãos e Tecidos, passando pela Vigilância em Saúde, pelo controle da
AIDS e pela atenção nas áreas da saúde mental, saúde do trabalhador,
urgências e os hemocentros. Estas centenas de focos e nichos são
testemunhas de que no caso da Reforma Sanitária e do SUS, eles chegam
perto mas não conseguem roubar nossa lua nem arrancar nossa voz da
garganta. Eis o “poema” de 14 estrofes:
→ Entre 1.964 a 1.984 eles sucatearam a
rede hospitalar e ambulatorial própria da nossa Previdência Social − a
de melhor qualidade em nosso país – e passaram a comprar massivamente
por produção, serviços na rede privada, além de fomentar com recursos
públicos, grande ampliação da rede privada hospitalar e ambulatorial.
Não contentes, eles privilegiaram com renúncia fiscal do Imposto de
Renda (subsídio público) as pessoas jurídicas e físicas no mercado
liberal e empresarial da assistência á saúde.
→ No início dos anos 90 eles golpearam
drasticamente o financiamento federal do SUS (descumprindo os 30% do
orçamento da seguridade social para o SUS e retirando o Fundo
Previdenciário da base de cálculo da parcela federal), levando a
drástico desinvestimento na rede pública hospitalar e ambulatorial de
média e alta complexidade.
→ Nos anos 90 eles exacerbaram os
contratos públicos de prestadores privados de assistência especializada á
saúde, pagos por produção, que de complementares perante a Lei passaram
a substitutivos da rede pública.
→ Também nos anos 90 eles ampliam os
subsídios ao mercado, com o co-financiamento público de planos privados
para todos os servidores e empregados públicos, além da ampliação da
renúncia fiscal na assistência privada para todos os trabalhadores
formais do setor privado e sua estrutura sindical.
→A partir de 1.996, eles desviam a CPMF
recém aprovada para o financiamento do SUS, para outros dispêndios da
União, e criam a DRU que desvia 20% do orçamento da Seguridade Social
também para outros dispêndios da União.
→ A partir de 1.998 eles permitem
legalmente a aquisição de empresas nacionais de planos privados por
capital estrangeiro (caso da AMIL e Intermédica) assim como descumprem o
ressarcimento ao SUS dos serviços públicos de saúde prestados aos
consumidores de planos privados.
→ Em 1.999 e 2000 eles criam as OS e OSCIP, entes privados para gerenciarem hospitais, ambulatórios e laboratórios públicos.
→ Em 2000 eles limitam drasticamente,
por lei, as contratações na base do SUS, e obrigam somente os Estados,
DF e Municípios a destinarem % mínima da sua arrecadação ao SUS (12% e
15%).
→ Em 2004 eles impedem a vitória do
histórico PLP nº 01/2003 que dispunha sobre o equivalente a 10% da
Receita Corrente Bruta da União para o SUS, os repasses federais
equitativos e a regionalização.
→ Nos anos 2000 eles fomentam
financiamento barato e facilitado para ampliação de hospitais privados e
sofisticados de grande porte, e também para aquisição e construção de
hospitais próprios das empresas de planos privados, inclusive pelo BID e
BNDES.
→ Em 2013 eles ampliam para a COFINS e o
PIS a renúncia fiscal para as empresas de planos privados, e emitem a
PEC – 358 que constitucionaliza o drástico subfinanciamento federal ao
SUS, em substituição do PLIP – 321 subscrito por 2,2 milhões de
eleitores e dezenas de entidades da sociedade civil, que resgatava o
equivalente a 10% da RCB.
→ Em 2014 eles aprovam a MP – 656 que
legaliza (inconstitucionalmente) a abertura de toda a estrutura
assistencial privada á aquisição pelo capital estrangeiro: trata-se de
um “filão de ouro” de mercado de 55 a 60 milhões de consumidores de
planos privados de saúde fortemente subsidiados com recursos públicos e
com mensalidades entre 80 e 7.000 reais para assistência de média e alta
densidade tecnológica. Trata-se também da etapa monopolista e
globalizada da concentração do grande capital na assistência á saúde: as
médias empresas comprando as pequenas, as grandes comprando as médias e
conglomerando-se internacionalmente, submetendo os Estados Nacionais,
regulando-os ao contrário de serem regulados.
→Acaba de ser anunciado que sob o
pretexto de ação regulatória no mercado, eles incentivarão a expansão
dos planos privados individuais em detrimento dos planos e acordos
coletivos, satisfazendo velha aspiração das empresas de planos privados
perante a maior força dos coletivos por seus direitos e a maior
vulnerabilidade do indivíduo cidadão.
→ Como consequência final da estratégia
hegemônica nos 25 anos do SUS, por eles implementada, temos hoje a
“cobertura universal segmentada”: 25 a 30% da população que consome
planos privados subsidiados, com per-cápita médio anual “privado” 3 a 4
vezes maior que o baixíssimo per–cápita “SUS” para toda a população.
Como esses 25 a 30% utilizam os serviços e materiais do SUS em
intensidade crescente, tanto na rotina como pelas ações judiciais
individuais, é somado ao seu per-cápita “privado”, resultando um
per-cápita 4 a 6 vezes maior que o dos 70 a 75% que não tem condições de
comprar plano privado. A segmentação do acesso, qualidade e oferta é
realizada também no conjunto dos consumidores: com mensalidade entre 80 e
7.000 reais. Essa “cobertura universal segmentada” construída em 25
anos, tripudia a Equidade e Integralidade: é o anti-SUS. Tem o Estado
nacional, pelo menos na saúde, atuando como grande aparelho criador de
mercado. Cabe duvidar se foi apenas simbólica a entrega pública á
Presidência da República, no 2º semestre/2014, do livro Branco da Saúde
elaborado pela empresa internacional Antares Consulting, aonde constam 3
níveis de gestão, 10 eixos estratégicos e 12 propostas, contratado pela
Associação Nacional de Hospitais Privados – ANAHP.
As centenas de focos ou nichos de
excelência e expertise no território nacional, inicialmente destacados,
que resistem e acumulam avanços no SUS à luz da Universalidade,
Integralidade e Equidade, são decisivos para futura retomada estratégica
e efetivação da hegemonia na construção conjunta de todos os postulados
constitucionais. Hoje são ainda, no volume do atendimento, do
financiamento e na qualidade, a exceção. As estatísticas anuais globais
dos bilhões de ações na Atenção Básica, na Média e Alta Complexidade,
das centenas de milhões de exames diagnósticos, de duas centenas de
bilhões de reais no financiamento e outras, impressionam e impactam, mas
a única comprovação positiva é a surpreendente capacidade produtiva dos
trabalhadores de saúde com tão poucos recursos públicos. A regra que
preside essas estatísticas é a do atendimento massivo de demanda
reprimida em todos os níveis. O encadeamento e direcionamento dessa
massa de financiamento e atendimento sob a lógica da Equidade e
Integralidade construindo a Universalidade, isto é, dos postulados
constitucionais, é incompatível com as atuais estratégias hegemônicas na
sociedade e no Estado. Por isso, a mera citação dessas estatísticas na
mídia são em regra ufanistas visando falsa comprovação de que a
Constituição está sendo cumprida na saúde.
Quem são eles? Eles e seus prepostos? De
1.964 a 1.984? Nos anos 90? E neste novo século? Qual o diferencial na
Sociedade e na sua relação com o Estado entre 1.984 e 1.989?